sábado, 19 de maio de 2007
Educação Física em Portugal deve mudar!! e já!!
ENTREVISTA AO PROF. GUSTAVO PIRES
Num dos artigos que escreveu para a PÁGINA na rubrica "Educação Desportiva" refere-se à disciplina de Educação Física como uma "animação físico-recreativa de qualidade duvidosa". Porquê?
Porque considero que o quadro da superestrutura em que se enquadra a Educação Física em Portugal, tanto no que se refere ao próprio conceito de ensino como à própria organização da disciplina, já não corresponde aos objectivos e anseios das crianças e dos jovens nem responde àquilo que a sociedade espera de um instrumento educativo tão importante como é o desporto.
Na minha opinião, o desporto promove os valores educativos através da agonística em busca da superação e da excelência. No contexto actual do país, em que a própria economia real luta pela sobrevivência, o desporto, bem organizado no quadro do sistema educativo, poderia constituir um instrumento de promoção dos valores da competição, do empreendedorismo e da excelência.
Está a dizer que a Educação Física que se pratica hoje nas escolas está, portanto, desactualizada...
A Educação Física já deveria ter mudado de paradigma há muito tempo. Ela é introduzida em Portugal a partir do início do século XX pelos chamados sportsmen, antigos professores de ginástica oriundos sobretudo das actividades circenses. Aliás, os primeiros campeonatos de luta e de pesos e halteres em Portugal foram organizados, nos princípios desse século, precisamente sob o paradigma do circo.
A racionalidade científica associada à prática desportiva aparece mais tarde, oriunda do norte da Europa, com uma metodologia própria e conotada com a promoção da saúde, nomeadamente através da prescrição do exercício. Isto deu origem à divulgação de trabalhos sobre esta área em Portugal, fundamentalmente pela mão de Luís Furtado Coelho, que foi um dos introdutores da ginástica de linha no nosso país, dando-se a mudança de paradigma da ginástica para a Educação Física.
Sob que modelo está organizada a Educação Física nas escolas portuguesas?
A Educação Física organiza-se em torno de três vertentes fundamentais: a primeira é a actividade curricular disciplinar, que funciona com base num programa - com o qual eu não estou de acordo; Depois, as actividades disciplinares não curriculares, sobretudo desenvolvidas através da Área-escola, de que são exemplo os campeonatos inter-turmas; e as actividades de complemento curricular, traduzidas naquilo que se convencionou chamar o Desporto Escolar.
Porque não está de acordo com o programa?
Porque o actual programa não assume o desporto e os seus valores, é um programa que privilegia a mera actividade física, a maioria das vezes sem uma tecnologia específica que dê significado àquilo que é hoje, no quadro da cultura actual da nossa sociedade, o desporto.
Por outro lado, o processo de desenvolvimento curricular não permite uma avaliação concreta daquilo que o aluno é e daquilo que é capaz, no contexto de uma cultura objectiva e de uma tecnologia que ele deveria ser capaz de dominar. A avaliação acaba, assim, por ter pouco significado, não passando da observação de um conjunto de gestos motores que o professor avalia sem grande objectividade.
Só é possível haver uma avaliação séria e rigorosa se o desporto for assumido concretamente, se existir uma filosofia e uma lógica de organização temporal próprias, aliadas ao princípio da especialização. Eu não concebo que os alunos cheguem ao final do ensino secundário e continuem a fazer iniciação a uma qualquer modalidade desportiva. Nessa idade o aluno já deveria ter escolhido o desporto da sua preferência, no qual seria avaliado e através do qual assumiria uma cultura que se projectaria para a vida, assumindo-se, dessa forma, como promotor de desenvolvimento.
Actualmente não é isso que acontece. Basta ver que a taxa de participação desportiva em Portugal é uma das mais miseráveis da Europa. E um dos principais responsáveis é precisamente este sistema de ensino que não promove os valores do desporto. Promove qualquer coisa que não se sabe bem o que é...
Considera a Educação Física e o Desporto Escolar como "duas realidades organizacionais distintas". Na sua opinião, elas deveriam ser complementares e constituírem aquilo que denomina como "Educação Desportiva". É correcto?
Sim, são duas estruturas que deveriam estar reunidas sob uma única entidade organizacional. O problema do Desporto Escolar é que sempre foi, de certa forma - desde a Mocidade Portuguesa -, um elemento estranho à escola. Foi esta a razão para que na segunda fase da Mocidade Portuguesa, fundamentalmente a partir de meados dos anos 60, esta tenha assumido a vertente do Desporto Escolar. Isto, porque a Educação Física não estava a cumprir com os seus objectivos, burocratizou-se, criou taxonomias que, desde então, suportam mais os trabalhos de investigação de alguns académicos do que propriamente as necessidades dos jovens que frequentam as escolas.
O Desporto Escolar é introduzido nas escolas como forma de tentar superar a carência de oferta que se verifica nesta área. Mas os cidadãos pagam impostos pela Educação Física, pelas actividades da Área Escola, pelo Desporto Escolar, pelas actividades que o Inatel organiza para as camadas mais jovens e pelos subsídios atribuídos aos clubes privados – estes últimos porque o sistema não responde às necessidades dos jovens. Ou seja, o país tem vindo a ser "enganado" desde há muitos anos e eu admiro-me que ainda não se tenha posto um ponto final nesta situação e se avance para um modelo integrado, salvaguardando quer os interesses dos alunos, quer os do país.
No fundo, o problema do Desporto Escolar é que este se tem situado num limbo, que se torna difícil de resolver enquanto existir o estigma da Educação Física a montante. Nesse sentido, não compreendo que a própria Sociedade de Educação Física e as organizações ligadas ao desporto, que funcionam sobretudo com base numa ideologia corporativa, não tenham a liberdade de espírito suficiente para perceber que novos dados estão a ser lançados e que tudo deve ser reequacionado. O mundo mudou, já não estamos nas décadas de 30 ou 40.
Em termos metodológicos e organizativos em que se distinguiria a Educação Desportiva daquilo que está hoje em prática nas escolas?
O que sucede hoje em países onde os valores do desporto são levados a sério, como é o exemplo da Austrália, a Educação Desportiva surge na escola enquanto actividade que prepara os alunos para serem detentores de hábitos e de conhecimentos em matéria de desporto que se prolonguem para a vida, o que não acontece em Portugal. Porque se isso acontecesse, e com os meios que existem, não se verificariam as baixíssimas taxas de participação desportiva que marcam negativamente o nosso país.
Para isso, a escola tem de organizar no seu interior um modelo desportivo de quadros competitivos, de actividades formais e informais enquadradas no mundo do desporto, que dêem resposta às necessidades dos alunos e que projectem essa aprendizagem para a vida, tudo isto avaliado sob critérios competitivos. A par destas orientações, o programa tem de ter em conta e valorizar um princípio fundamental da educação: a especialização.
É evidente que até ao 7º ou 8º ano de escolaridade os alunos devem receber uma educação eclética do ponto de vista desportivo, mas a partir dessa altura têm de começar a fazer opções por determinadas modalidades e evoluir nelas até a um alto nível de competição.
De igual forma, os professores devem especializar-se em determinadas modalidades, porque não acredito que um professor seja capaz de ensinar basquetebol, voleibol, andebol ou futebol ao mais alto nível e ainda ser especialista em actividades de aventura exploração da natureza e sobrevivência.
Isso implicaria uma completa reformulação dos pressupostos em que está organizada a disciplina...
Não necessariamente, porque, de certo modo, já se deu o primeiro passo, criando-se um departamento próprio e integrando-a num conjunto de disciplinas enquadradas nas artes e no lazer. Muitas pessoas entenderam isto como uma despromoção da Educação Física, mas eu penso exactamente o contrário. Nem tem lógica pensar que ela deva concorrer em pé de igualdade com a Matemática, o Português ou as novas tecnologias. Estas preparam os alunos fundamentalmente para o mundo do trabalho. A Educação Desportiva, a Educação Musical, Visual e outras, preparam-no fundamentalmente para o mundo do tempo livre e do lazer. Assim, estas disciplinas devem ser abordadas de uma forma diferente, pelo que obrigam a encontrar outros espaços e outros tempos, e não a insistir numa burocracia, com uma lógica semelhante às restantes disciplinas. Na minha opinião, isto nunca funcionará.
Referiu-se a outros espaços e a outros tempos como condições necessárias. Pode explicar em que moldes assentariam?
Uma dinâmica de educação para o tempo de lazer tem, em muitas circunstâncias, de se projectar no próprio tempo de lazer dos alunos, seus familiares e da comunidade aonde a escola está inserida. As aprendizagens em matéria de desporto têm de se projectar para fora da sala de aula e da própria escola. É necessário pôr o princípio da especialização a funcionar na sua plenitude. Especialização dos programas (na sua superestrutura), dos alunos, dos professores e das próprias escolas. Porque razão os campeonatos desportivos escolares não hão-de ser uma coisa séria e continuada no processo educativo. Porque é que uma turma não há-de parar as aulas para ter uma semana de aventura, de exploração da natureza e sobrevivência, privilegiando uma lógica diferente de organização à que a escola nos habituou?
Congresso Nacional do Desporto: Uma oportunidade perdida?
O Congresso Nacional do Desporto, realizado em Fevereiro do ano passado, pretendeu reunir os diferentes intervenientes nesta área em Portugal e definir uma Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto. Em dois artigos criticou a sua realização. Porquê?
Entendi que o Congresso do Desporto não proporcionou verdadeiramente condições para se poder participar. Considero que ele não foi idealizado de maneira a procurar construir um projecto de futuro para o país nesta área, isto é, ouvindo as pessoas e as instituições de forma clara e organizada. Foi pena.
O objectivo principal do encontro foi tentar formular uma Lei de Bases para o desporto nacional. Isso foi conseguido?
Eu não concebo que se organize um congresso para elaborar uma Lei de Bases. Um instrumento jurídico dessa natureza tem de decorrer da ideologia do partido que está no governo ou de um quadro ideológico inerente às orientações políticas deste bloco central que invariavelmente tem ocupado o poder. Seriam os partidos políticos que, entre si, teriam de chegar a um acordo sobre esta matéria.
Não considera que uma matéria tão abrangente como esta necessita de um consenso mais alargado?
Eu não sei se houve consenso no referido encontro. Sei que a Lei de Bases foi aprovada na Assembleia da República porque o partido do governo tem a maioria que lhe permitiu aprová-la. E apesar de saber que existem diversas críticas relativamente ao documento final, considero que não é isso que está em causa.
O que está em causa são duas questões fundamentais. A primeira é a metodologia, isto é, saber até que ponto se pretende que a sociedade intervenha em matéria de política pública desportiva. Em caso afirmativo, deve encontrar-se meios de auscultação, perguntando as coisas certas às pessoas certas. Porque não se pode questionar matérias que as pessoas não estão preparadas para responder, correndo-se o risco de obter respostas absolutamente disparatadas. Na minha opinião, e apesar de o congresso ter tido o seu valor, isso não foi conseguido. Em termos de produto final, as opiniões expressas no encontro não se reflectiram no documento final. Nem podiam.
O segundo aspecto que considero fundamental reflectir em termos futuros é a posição dos partidos políticos em termos de política desportiva, que nunca a tiveram. Nem o Partido Comunista, que tradicionalmente é mais forte do ponto de vista ideológico, tem uma posição clara em termos de política desportiva.
Depois, é frequente os partidos políticos fazerem cedências a determinados lobbies desportivos, não havendo uma correspondência clara entre aquilo que dizem e aquilo que fazem. Os lobbies nesta área são muito poderosos - a própria comunicação social acaba por viver muito em função deles - e quem acaba por sair prejudicado é o país.
Não havendo um quadro ideológico claro, quando se vota num partido nunca se sabe ao certo o que ele defende em relação a esta matéria. Os políticos têm umas ideias avulsas, e habitualmente defendem o desporto escolar porque é politicamente correcto fazê-lo. Mas depois o que vemos é que a organização do Desporto Escolar em Portugal tem sido uma autêntica fraude por ninguém querer assumir a prática desportiva escolar com meios, recursos e atribuir-lhe uma missão bem definida.
Acha que a formação de professores de educação física reflecte de algum modo essa falta de orientação que tem referido ou as escolas de formação têm tentado avançar na procura de modelos de formação inovadores?
Sim, tem havido algumas tentativas de transformar a formação de professores nesta área. A Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, por exemplo, alterou a sua filosofia de actuação neste sentido – um reflexo disso mesmo é o facto de ter mudado a sua designação para "faculdade de desporto" – procurando ter uma visão profundamente aberta no sentido de imprimir na organização escolar o desporto como paradigma e instrumento de educação, promovendo através dele os valores da vida e da cidadania junto dos jovens.
Infelizmente há escolas onde isso não acontece e se verifica mesmo um retrocesso em relação ao passado, numa tentativa reaccionária de voltar aos velhos valores de uma Educação Física que, na minha perspectiva, é profundamente anti-social, que cumpriu os seus objectivos num determinado momento do país mas que hoje deveria haver coragem para ultrapassar.
Os teóricos da formação do desporto em Portugal estão, ao que posso concluir, divididos em relação a esta matéria...?
Na minha opinião, tem de haver uma clara confrontação ideológicas que só por inépcia as sociedades de educação física ainda não foram capazes de promover. Mais uma vez insisto: os partidos que estão no poder têm de saber o que querem, não podem andar ao sabor do vento.
Teme que continuemos a ser um país que se limita a jogar à bola?
Eu acho que jogar à bola é bom, e o futebol é um bom exemplo para ilustrar o que tenho vindo a dizer. As pessoas passam a vida a dizer que o país só vive de futebol... mas deveriam perguntar-se: porquê o futebol? Porque, de facto, o futebol tem os valores que tocam e mobilizam as pessoas.
Porque razão os outros desportos não conseguem esse nível de adesão? Desde logo porque a escola não dá resposta a esse entusiasmo. O que faz a escola para promover o basquetebol, o voleibol, o andebol, entre outros, e criar outros interesses nos jovens? É preciso criar programas especiais, bem conduzidos, com objectivos bem determinados, permitindo a especialização do aluno. A paixão por uma modalidade desportiva surge aos treze ou catorze anos, depois dessa idade é difícil. Depois é mais uma questão de alienação do que de paixão.
Eu recuso o discurso lamechas em torno do futebol, até porque ele já vem muito detrás, praticamente desde que foram introduzidas as primeiras publicações desportivas em Portugal. Agora, o país não pode é construir dez estádios de futebol em meia dúzia de anos; o país não pode ter processos como o Apito Dourado; os dirigentes desportivos não podem ser pessoas suspeitas; a Federação Portuguesa de Futebol não pode eleger pessoas que são arguidas em processos de corrupção. Isto revela o nosso subdesenvolvimento. Contra este futebol estamos de acordo.
Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa in a Página da Educação.